9.5.03

O Dia Do Pirilau

Por estes dias, lá em casa, as manhãs despertam com uma pontinha de frio. Pontinha é, sinceramente, o termo que desejava mesmo empregar. O pirilau - igualmente conhecido por tarolo, tringalha, lavagante, pila, pilinha, piroca, gaita e um inenarrável conjunto de apodos mais (também quis mesmo usar "apodos") - também tem o seu dia.
Não é o dia de S. Pirilau, porque o Vaticano não o reconheceria ou porque trataria logo de o enfaixar ou mandar pintar de amarelo. Também não vem no "Borda d'Água", mas tudo me diz que será um mero erro de impressão, uma distração de revisor catarático, ou fruto dum excesso de zelo com respeito à pudenda.
Esta seria, no entanto, a dimensão mais institucional, mais solene, por dizer assim, do pirilau - e é sabido que pirilau que se respeite enfia-se na sua magnânime subjectividade e não tem quaisquer aspirações de grandeza.

Da mesma forma que há A Noite da Iguana, não vejo impedimento para que exista O Dia Do Pirilau - o meu, por supuesto. O meu dia e o meu pirilau.
Por estes dias, dizia eu, as manhãs lá em casa têm despertado com uma pontinha de frio. Não é que viva numa casa modelo Beirute ou Bagdade, plena de frinchas e buraquinhos por onde o frio entra sem pedir licença. É um apartamento novinho, recuperado com gosto, alvo nas paredes, de tom claro no chão. Não; aqui, ao frio cobra-se-lhe entrada!
O frio de que falo é aquele frio muito próprio dos acordares, quando se tem de saltar a fronteira do vale dos lençois, cruzar estremunhado as agruras da distância até à casa de banho - e aqui estarrecer.
Já queria ter dado um toque à Raquel, a senhoria - e não, não é desses toques - para que ponha um tapetinho na dita divisão e que trate de aumentar a temperatura da água do duche.
É que por sobre as leis da Física, os impostos e a morte, apenas governa um princípio da Natureza; somente uma coisa é mais certa que o destino: o ego de um homem, o seu estado de espírito, a sua determinação, dependem daquela fracção de tempo em que se produz o encontro mútuo e matinal - por demais celebrado e revivido - entre um homem e o seu pirilau. Conforme se apresente este, assim terá aquele um dia mais ou menos entusiasmado, menos ou mais murcho.
É verdade que nada disto se processa em tempo real, como é uso dizer agora. Ninguém se levanta a pensar no estado de ânimo do seu pirilau e em como isso vai condicionar o dia. Entre H e P não há sequer um mínimo cumprimento.
Tudo aqui é fruto de ruminação, de muitos entra-e-sai da casa de banho - e o resultado é uma proto-teoria, está bom de ver.
Se fosse verdade que aos destinos da vida vai sonhador o sonho, não haveria esta relação simbiótica entre as duas entidades. A Razão, ao Pirilau, mal consegue dizer bom dia; este, por sua vez, como palavras não se lhe conhecem, comunica-se à força de mímicas e consistências - e nem sempre será bem interpretado.
A simbiose, essa, produz-se no tal tenso momento em que homem e pirilau se soslaiam e em mais um diálogo surdo se poderia entrever:
- «Está um frio do caralho...»
- «De mim, não; sou um animal de sangue quente. Quem te manda trazer-me assim desabrigado?»
- «Isso anda desanimado, aí por baixo, ahn?...»
- «Olhameste freak!... Deves pensar que o relento me anima, não?... Idiota!»
Falhas de comunicação? Náaa... De sentir aquela mirada ciclópica cravada no chão da banheira, a qualquer um se lhe esmorece o alento; e ao pirilau pouco ajuda adivinhar-nos este humor. Um alegra o outro ou nada feito.
E o frio, claro está, exerce aqui uma opressão redutora: o dito popular do "incha, desincha e passa" vê-se reduzido a "passa" - na sua dimensão uva.

Já disse que por estes dias, lá em casa, as manhãs despertam com uma pontinha ao frio?...
Sic transit gloria mundi...

Avé!
alter-lego